segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Um peão estrada afora

O senhor está vendo lá na estrada aquele vulto que se move despacito? É um velho gaúcho que volta pras suas pobrezas, um trabalhador de sol a sol, um homem forjado no lombo do pingo que pagou caro pelo preço de todos os aporreados que domou, que carrega nos braços as marcas das mordidas dos colhudos que sofrenou. Lá vai, outra vez, qual um duende alquebrado em suas pilchas já puídas, um símbolo vivo dos que vivem hoje nos silêncios de um rancho de campo, mastigando solidões, curando os golpes duros de cada pegada, andando com as pernas tortas depois de tanto estradear. Le peço, não ria nem deboche daquele farrapo, porque ele leva nas mãos calejadas todas as ingratidões que um vivente, às vezes, se obriga a passar. Andeja pelo mundo sem que a Previdência tenha vindo lhe ajudar. Perdeu, ao longo dos caminhos, os amigos e os companheiros. Hoje só lhe resta nas noites de luar, a canha e uma antiga viola de pinho para vibrar as cordas e tocar antigas milongas pra um cusco escutar.

Enquanto troteia no lombo do seu lobuno cabano, certamente vai pensando naquela florzita linda que um dia mirou lavando roupa sobre a pedra da sanga. A prenda que foi dele e que depois também se foi. Quando voltou de uma tropeada, o rancho estava vazio, não suportou viver naqueles descampados. E no chocalhar dos aperos, o índio vai fitando o poente, onde o sol daqui a pouco descamba. O xiru sabe que depois disso a lua virá se debruçar na humilde varanda, atrás do ranchito, e então poderá pitar um palheiro devagar, olhando a fumaça espessa e cheirosa, porque ainda resta um naco de fumo de rolo lá da venda do Venuto. Ah, meu senhor, aquele é um dos antigos, eu queria que a vida lhe reservasse outro destino...Mas ele aguenta firme, qual um pau-ferro perdido no meio da invernada.

Daqui a pouco, quando o senhor voltar pra cidade, vai passar na frente do rancho dele, ali no Durasnal, sabe onde fica? Pois então faça-me um favor, entregue esta manta de charque, diga-lhe que é de meu feitio. Amanhã é Natal, logo depois vem o Ano-Novo, e um carreteiro feito a capricho dá gosto, não concorda? Ainda mais um homem como aquele, nascido lá no Rincão da Cruz e aquerenciado aqui na Vila Rica. Não o conhece? É o velho Firmino... Ah, e se der tempo, fique um bocadinho, tenha uns dois dedos de prosa, pergunte pela cavalhada que ele deixava pronta até pra selim de china. Pergunte pelo alazão Tranquilo, um cavalo que ele levou três meses pra amansar. E pela égua baia, do seu Juventino... Leve um abraço meu, da gurizada, e olhe, leve também este surrão de couro, porque nunca deve faltar erva pra um gaúcho tomar mate...

Fonte! Chasque publicado no Correio do Povo de Porto Alegre/RS - http://www.correiodopovo.com.br/. Edição do dia 21/02/10, de autoria de Paulo Mendes - pmendes@correiodopovo.com.br, no Caderno Correio Rural.

Crédito: Arte de Luiz Octavio sobre a foto de Aldo Sessa, extraída do Livro "GAUCHOS".

Nenhum comentário:

Postar um comentário