segunda-feira, 1 de março de 2010

Romance arrabalero

Naquele sábado quente de janeiro, Valentim encilhou um baio oveiro depois do meio-dia e deixou-o atado pelo cabrestro debaixo da ramada em frente ao galpão da Estância. Entrou no galpão, foi direto ao quartinho dos fundos onde dormia e guardava suas coisas de peão campeiro e abriu o velho armário. Quando saiu e montou, vestia uma bela pilcha, camisa branca de casemira, uma bombacha escura com favos, lenço vermelho à meia espalda, botas de pelica bem lustradas, o chapéu de aba larga e de barbicacho tapeado na testa e o pala de seda por sobre o ombro. A guaiaca, couro de lontra com fivela prateada em forma de ferradura, cingia à cintura a adaga com cabo de osso e ''s" de ferro. Havia calçado também as chilenas de prata, com papagaios de palmo e meio e rosetas de cinco pontas. Apenas por pacholeio e também por ser homem solteiro, atou a cola do pingo e atou nos tentos o laço com que gostava de pealar de sobrelombo nas várzeas e coxilhas missioneiras.

Pela hora da Ave-Maria enxergou aquele rancherio de fim de mundo, buscou as esporas e gritou um "vamo, pingo", dando uma galopeada até chegar às primeiras casas. O povoado estava silencioso àquela hora e ali, naqueles ranchos cercados de taquara, só se ouvia a voz de um rasguido doble vindo de algum rádio de pilha. Passou pela bodega do velho Aparício, um bolicho sortido à canha e rapadura. Lá dentro, um gaiteiro borracho quase dormia sobre a cordeona, enquanto executava uma chamarrita que falava de amores não correspondidos. À frente, ainda na rua empoeirada, cruzou por uma gurizada que jogava bolita. Cochicharam "lá vai o gaudério pras pinguanchas". Valentin passou por eles rindo, abanando o pala ao vento.

Estava feliz por rever Ruana. Tinham se conhecido há pouco mais de um ano e vinham se encontrando todos os meses. O peão gostou dela, ela aceitou o gaúcho, se negacearam por dias até que se encontraram. Então vararam noites e dias bêbados de amor, se amaram com fúria, rasgando os lábios, se mordendo com paixão canina. O cavaleiro chegou à pequena casa caiada com cortinas nas janelas, atou o cavalo num poste de luz, abriu o portãozinho de ferro, bateu na porta e disse "sou eu, Valentim".

Antes da meia-noite, abriu a porta, botou a ponta da bota no estribo, alçou a perna e seguiu a trote assobiando um chamamé, de volta pra casa. O arrabalde estava mudo, as luminárias tristonhas. O coração do peão voltava manso, as carnes acalmadas. Foi se afastando devagar dentro da noite escura, ouvindo os acoos dos cuscos cada vez mais longe. Para trás ficou, estendida na cama, uma moça solita. Ela levantou, vestiu a camisola de cambraia, tomou um pouco de água da jarra de barro e dormiu feliz.

Fonte! Chasque publicado no dia 28/02/2010 no Correio do Povo de Porto Alegre - RS, por Paulo Mendes, no caderno Correio Rural - http://www.correiodopovo.com.br/.
 
Crédito do Retrato - Arte de Luiz Octavio sobre óleo de Rodolfo Ramos

Nenhum comentário:

Postar um comentário